"Monstros existem, mas eles são pouco numerosos demais para serem realmente perigosos; os monstros mais perigosos são os comuns [homens e mulheres] prontos para acreditar e a obedecer sem questionar."
Primo Levi, A Trégua
Para uma sociedade prosperar em paz ela depende de obediência rigorosa às leis e aos ditames do Estado? Votar é o único meio adequado para mostrar descontentamento com decisões de políticos e burocratas? Enquanto os sistemas educacionais modernos e a grande mídia tentam nos doutrinar com uma mentalidade obediente e a classe política almeja uma obediência quase cega da população, a história nos traz uma lição diferente sobre o valor de sempre fazer o que nos é dito. Neste texto vamos discutir porque é a obediência, e não a desobediência, a maior ameaça à humanidade, ao mesmo tempo em que examina o papel da desobediência civil na preservação de uma sociedade livre.
Como diz o historiador norte-americano Howard Zinn:
"O problema não é a desobediência, é a obediência."
Howard Zinn, Obediência Civil é o problema
A pergunta nos é feita pelo psicólogo alemão Wilhelm Reich:
"A verdadeira questão não é saber por que as pessoas se rebelam, mas por que elas não se rebelam."
Wilhelm Reich
As irmãs Grimke, reconhecidas por seu trabalho junto aos movimentos abolicionistas e de sufrágio feminino do século XIX colocaram desta forma:
"A doutrina da obediência cega e da submissão não qualificada a qualquer poder humano, seja civil ou eclesiástico [religioso], é a doutrina do despotismo."
Sarah Grimke, Angelina Grimke "Sobre escravidão e abolicionismo: ensaios e cartas"
A obediência pode ser definida como a realização de uma ação não por desejo ou motivação pessoal, mas porque essa pessoa foi ordenada a fazê-lo por alguém em uma posição de autoridade. A obediência pode ser extremamente benéfica em certas circunstâncias, como na relação entre filhos e pais, tendo em vista que a criança ainda não amadureceu o suficiente para assumir responsabilidade pessoal, ou mesmo em situações extremas como em uma guerra para defesa do próprio território onde decisões ligeiras podem ser críticas para combater uma violência cometida contra sua população. No entanto, em outros casos, a obediência pode levar aos resultados mais brutais. O que este triste fato da história sugere é que os seres humanos têm uma forte tendência a obedecer a aqueles em posições de poder.
Enquanto é possível traçar essas características de obediência ao nosso passado evolutivo no contexto da influência de hierarquias de dominação, isso não explica por que as pessoas obedecem mesmo quando as ações demandadas são claramente imorais ou em detrimento da própria sobrevivência.
O filósofo Voltaire disse “Aqueles que podem te fazer crer em absurdos podem te fazer cometer atrocidades”.
No século XX, quando milhões e milhões de corpos foram empilhados por regimes totalitários, a história nos evidenciou, outra vez, o quanto a obediência pode matar. Não foi uma rebelião ou um desrespeito pela lei que enviou centenas de milhões para uma morte prematura em campos de concentração da Alemanha Nazista, ou nos seus similares em outros países como na União Soviética, China ou Camboja, mas o fato de que nesses países as pessoas obedecem demais. Obedeceram a leis imorais e aceitaram ordens de políticos e burocratas que são destrutivas socialmente. Essas terríveis experiências, num tempo ainda tão recente e próximo ao nosso, nos ensinaram uma lição muito importante, mas que aparentemente já foi rapidamente esquecida: às vezes é a obediência, e não a desobediência que é o verdadeiro crime.
Ou como Peter Ustinov escreveu em um artigo de 1967 para o New Yorker:
"Durante séculos pessoas foram punidas por terem desobedecido. Nos [julgamentos nazistas de] Nuremberg, pela primeira vez, homens foram punidos por terem obedecido. As repercussões desse precedente só agora começam a ser sentidas."
Peter Ustinov
Mesmo que se entenda que leis que levam ao sofrimento de pessoas inocentes e à destruição de uma sociedade devem ser desobedecidas, esse movimento se torna muito mais difícil conforme o país desce as escalas na direção de mais totalitarismo, visto que o que acompanha essa escalada é uma escravização da população.
Esse processo se inicia por plantar nas mentes das massas, através de propaganda incessante, o consentimento pela própria servitude e, em seguida, na imposição de restrições físicas através de vigilância em massa, forças policiais e um sistema judicial cujo principal trabalho é manter as pessoas em um estado de submissão. Sob essas condições opressivas, presentes em algum grau em qualquer todo-poderoso Estado centralizado da história, a desobediência demanda um ato heroico da vontade, pois sair da linha pode ser facilmente pago com a própria vida.
O que torna a desobediência ainda mais desafiadora sob o totalitarismo é que quando o Estado controla tudo, a atividade econômica fica estagnada artificialmente em níveis baixos. A criação de escassez artificial se faz necessária para manter desigualdades, concentrações econômicas e sobretudo de poder.
Quando se luta por necessidades básicas da vida, quando se está com fome, encontrar comida é o que salta a mente, e não “resistir à tirania”.
Como Theodore Dalrymple explica:
"No totalitarismo a escassez de bens materiais, mesmo para suprir necessidades básicas, não eram uma desvantagem para governantes, mas uma grande vantagem. A escassez não foi acidental pelo terror, mas um de seus instrumentos mais poderosos. A escassez não só manteve a mente das pessoas estritamente no pão e na salsicha, desviando suas energias para sua obtenção de forma a não haver tempo ou inclinação para a subversão, mas a escassez significava que as pessoas poderiam passar a informar, espionar e trair umas às outras por um valor muito baixo...”
Theodore Dalrymple, The Wilder Shores of Marx: Journeys in a Vanishing World
A desobediência, portanto, não é um antídoto para tiranias em suas formas mais avançadas ou completas. A desobediência é uma medida preventiva à tirania. Mas para ser eficaz em retornar a liberdade a uma sociedade em risco de perdê-la, a desobediência deve contar com apoio generalizado, deve, em outras palavras, assumir a forma de desobediência civil. Quando é um indivíduo quem pratica a desobediência de forma solitária, isso é referido como dissidência ou objeção consciente.
A desobediência civil, por outro lado, ocorre quando um grupo de pessoas desobedece de forma pública. Esse ato de descumprimento em massa envia uma mensagem que político algum jamais quer ouvir: o povo não os teme mais, não os respeita mais e não vai mais obedecê-los.
Em contraste com um protesto onde uma população pede (implora) por sua liberdade de volta, é com a desobediência civil que uma população começa a tomar sua liberdade de volta.
Ou como Murray Rothbard explicou:
"... a resistência em massa não-violenta como método para a derrubada da tirania, provém diretamente do... fato de que todas as regras repousam no consentimento das massas sujeitas... Se a tirania... repousa no consentimento em massa, então o meio óbvio para sua derrubada é simplesmente pela retirada em massa desse consentimento. O peso da tirania entraria em colapso rápida e subitamente sob uma revolução não-violenta."
Murray Rothbard, Introdução à Política da Obediência
Mas como pessoas suficientes podem ser despertadas para a necessidade de desobedecer a leis imorais que são socialmente destrutivas? O que, em outras palavras, leva a um movimento de desobediência civil que pode derrotar o avanço de tiranias?
Uma tática possível é usar a razão, a lógica e a argumentação para conscientizar as massas sobre o diversionismo, mentiras e manipulações que estão sendo usadas para nos manter como um rebanho humano sob totalitarismo, apresentar as evidências científicas relacionadas a impossibilidade de construção de ordem a partir de ideologias baseadas em relativismo moral ou autoridade. Esta abordagem baseia-se na noção de que se a verdade fosse apresentada e a propaganda desconstruída a maioria das pessoas se levantariam em um ato desafiador e se libertariam de suas correntes (físicas ou psicológicas).
Mas um apelo à razão e à evidência só funciona em mentes abertas e receptivas. Quando a tirania está em progressão, há cada vez menos mentes neste estado. Em vez disso, o medo, a confusão, a raiva e a incerteza correm desenfreadas e essas emoções geralmente se sobrepõe ao poder da razão. Esse controle emocional da mente sobre a razão eficientemente nos torna receptivos a mentiras cômodas e nos afasta de necessárias e incômodas verdades enquanto nos faz apontar culpa ou a capacidade de trazer soluções para fora de nós mesmos, quando é para dentro onde deveríamos olhar primeiro. Nesse estado psicológico a culpa ou solução é sempre do outro, a autorreflexão, o entendimento da própria responsabilidade diante do problema é praticamente inexistente.
"A massa esmaga o discernimento e a reflexão que ainda são possíveis dentro do indivíduo... O argumento racional pode ser conduzido com alguma chance de sucesso apenas enquanto a emoção de uma determinada situação não exceder um certo grau crítico. Se a temperatura emotiva subir acima desse nível, a possibilidade da razão ter qualquer efeito cessa e seu lugar é tomado por slogans e fantasias de desejos quiméricos. Ou seja, uma espécie de possessão coletiva que rapidamente se desenvolve em uma epidemia psíquica."
Carl Jung, Civilização em Transição
Ou como disse Theodor Adorno:
“Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independente do seu conteúdo. No fundo dispõe de um EU fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada pelos mesmos.”
Ficamos tentados a sugerir que a maioria das pessoas são cúmplices nas tiranias devido ao medo. No entanto, embora isso seja verdade até um certo ponto, o medo por si não pode explicar o fato de que muitas pessoas não reconhecem a injustiça estrutural em seus próprios governos, mesmo ao viver debaixo de tiranias. A grande maioria das pessoas não conhece sequer o suficiente sobre princípios de liberdade ou sobre si mesmos para distinguir se vivem ou não sob uma tirania.
Como Don Mixon explica em seu livro: Obediência e Civilização
"Podemos ficar genuinamente intrigados em como as pessoas podem obedecer a ordens que parecem sanguinárias e estúpidas. O enigma talvez desapareça quando percebemos que aos olhos de seus autores os crimes hediondos da história não são crimes hediondos, mas atos de lealdade, patriotismo e dever. Do ponto de vista do presente, podemos vê-los como crimes hediondos, mas a partir desse mesmo ponto de vista, tipicamente não enxergamos os crimes de nossos próprios governos como hediondos ou mesmo como crimes." (Don Mixon, Obediência e Civilização)
Quando a base ideológica social se firma em relativismo moral, torna-se possível criar artificialmente posições irreconciliáveis que fomentam disputas na massa relativas a sintomas de problemas sociais, mas que jamais endereçam suas reais causas. Técnicas de “dividir para conquistar” através da promoção incessante de pautas dialéticas contribuem para a existência de problemas e asseguram controle social através da fragmentação ideológica da massa.
George Orwell enxergava a linguagem política predominantemente como uma forma de propaganda feita para enganar as pessoas:
“Linguagem política... é desenhada para fazer mentiras parecerem verdades e o assassinato respeitável, e dar uma aparência de solidez a puro vento.”
George Orwell
Michael Huemer, em seu livro “O Problema da Autoridade Política”, sugere que a existência de certos vieses cognitivos pode ajudar a explicar essa incapacidade de reconhecer a injustiça no próprio tempo e governo. Um dos vieses mais prevalentes é o fenômeno psicológico conhecido como dissonância cognitiva, basicamente representa mentir para si mesmo.
A existência de sistemas opressivos em governos produzem diversas situações em que dissonâncias ocorrem conforme os indivíduos são exigidos a tomar ações que contradizem seu entendimento do que é Direito e errado, assim como sua autoimagem como uma pessoa boa ou “do bem”. De imediato podemos citar o pagamento de impostos. Ao mesmo tempo em que sentimos o dever social de contribuir com infraestrutura, educação e saúde por exemplo, essa contribuição não só muitas vezes é direcionada de forma que consideramos injusta, mas sobretudo é feita através de ações coercitivas, onde a coação não é um Direito, portanto constitui uma violência do Estado sobre o cidadão, não importa quanta boa intenção pode legitimamente haver por trás das justificativas. Para lidar com essa dissonância algumas pessoas podem mesmo alterar sua visão sobre os benefícios ou necessidades de estados centralizados. Mas uma forma mais usual de sanar o incômodo causado pela dissonância é adotar justificativas que desculpem as ações do governo ou mesmo evitar fontes de informação que não estejam alinhadas com mentiras confortantes (viés de confirmação).
O primeiro passo para uma visão mais precisa sobre a natureza da política, governos e autoridade, para pararmos de mentir para nós mesmos de imediato, é reconhecer quantas vezes falhamos em separar o real do ideal em nossas formulações sobre tudo que for relacionado a política. Temos que nos condicionar a separar como desejamos que a política funcione, de efetivamente como ela funciona. Esse foi um dos maiores objetivos no até hoje atemporal trabalho de Niccolo Machiavelli, o Príncipe:
"...sendo a minha intenção escrever algo que possa ser útil para aquele que a compreende, parece-me mais apropriado seguir a real verdade do assunto do que a imaginação dela; pois muitos são os que imaginam repúblicas e principados que de fato nunca foram conhecidos ou vistos, porque como o indivíduo vive tão distante de como se deve viver, que aquele que negligencia o que é feito pelo que deve ser feito, não tarda a afetar mais a sua ruína do que sua preservação...”
Niccolo Machiavelli, o Príncipe
Imaginamos a democracia como a fórmula que legitima a estrutura política de nosso tempo, ao ensinar que o poder emana do povo e que políticos são nossos leais servidores e representantes. Mas a essência política, segundo Maquiavel, não é a busca pelo bem estar social, nem mesmo é fundamentalmente um mecanismo para maximizar o bem estar ou a cooperação social. Algumas formas de organizações políticas até podem tender para esses fins, enquanto outras são antíteses completas a eles, mas o que define a política em todos os tempos e manifestações é que se trata do território onde homens e algumas poucas mulheres competem de maneiras abertas ou secretas por poder e controle sobre os demais. O objetivo primário de políticos, ou de qualquer membro das elites no poder, é sempre o mesmo – acimentar, aumentar e expandir seu poder.
Nessa luta por poder social, somente uma ínfima parte de nós participa, o que leva para outro princípio Maquiavélico, que nos divide em dois grupos, governantes e governados.
Nenhum desses tentáculos de poder seriam possíveis, ou aceitáveis para uma maioria governada, sem a formulação de justificativas políticas com bases mitológicas ou religiosas. Isso pode não surpreender tanto, se considerarmos que as raízes da justificativa para uma elite minoritária comandar a todos historicamente sempre foram associadas a religião. Reis eram autoridades autoproclamadas como divinas na terra. Para nós ocidentais, foi em Romanos XIII onde Deus cedeu as elites sua autoridade na terra, herança de uma invenção romana e suas crenças pagãs que persiste até os dias de hoje.
“Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.
Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá.
Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal.
Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência.
É por isso também que vocês pagam imposto, pois as autoridades estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho.
Deem a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra.”
Romanos 13:1-7
Bases de sustentação ideológicas e filosóficas de governos funcionam exatamente como as de religiões, por se sustentarem em dogmas e exigirem a crença de seus membros. Para se legitimarem, governantes precisam espalhar ideias que são favoráveis a seus objetivos de poder e que, de alguma forma, convença as pessoas da necessidade de serem governados.
"É, portanto, em opinião que governos são fundados; e essa máxima se estende aos governos mais despóticos e mais militares, bem como aos mais livres e populares."
David Hume, Ensaios Morais, Políticos, Literários
Esta observação de que um povo doutrinado por propaganda nas crenças limitantes em relativismo moral e autoridade podem se tornar imunes à lógica e à razão foi compartilhada pelo escritor Elie Wiesel que ao visitar a União Soviética escreveu:
"A lógica não vai ajudá-lo aqui. Você tem a sua lógica, eles têm a deles, e a distância entre vocês dois não pode ser superada por palavras.”
Elie Wiesel
O que é necessário mais do que palavras e argumentos são dissidentes individuais, munidos de conhecimento sobre liberdade, Lei Natural, moralidade objetiva, e que agem como exemplos e motivadores para movimentos maiores de desobediência civil.
O poder do exemplo sempre reina supremo em sua capacidade de influenciar os outros. Quando as pessoas veem que alguém está disposto a correr riscos em defesa de suas crenças, do que é Direito, e que suas palavras são congruentes com suas ações, cria-se uma posição de credibilidade. Embora o exemplo de um dissidente não vá despertar os mais cegos para as cadeias de comando sendo colocadas ao seu redor, ele pode exercer uma forte influência sobre os muitos que estão em cima do muro sobre o que pensar e como agir. Mas sem alguns poucos corajosos dispostos a serem exemplos para os outros, existe uma espécie de dilema do prisioneiro: ninguém está disposto a ser o primeiro a desobedecer, e assim todos se sentam inertes em relação as causas esperando que outros venham salvar a sociedade para eles:
"Há muitos outros mais qualificados, mais competentes e eficazes do que eu. Uma multidão de almas com boa-vontade é projetada no horizonte, pronta para se levantar, para que assim eu possa recuar mais facilmente: outros agirão em vez de mim, tão melhor assim."
Frederic Gros, Desobedeça
Essa projeção externa da solução pode ser novamente associada a mitologia religiosa do salvador externo. Aguardamos surgir um novo líder, método de gestão, inovação, a volta de Jesus ou mesmo um alien vir nos salvar de nossa própria ignorância. Isso simplesmente jamais ocorrerá. Supere!!!
A liberdade não nasce através de unidade política, mas como a historia testemunha, é nascida das frestas que emergem quando as classes dominantes se dividem e diante da presença daqueles que defendem princípios e valores de liberdade. As brigas internas os enfraquecem e expõe seus verdadeiros tons para ainda mais pessoas dispostas a enxergar. Ainda assim, não podemos contar exclusivamente com a esperança de que as elites de poder vão se dividir entre si ao ponto de podermos relaxar e assistir que se destruam. Uma atitude de passividade somente nos deixará a mercê da facção que se sair melhor. Foram assim as “revoluções coloridas” no início do século XXI, a incluir os movimentos no Brasil de 2014-2016, que geraram uma expectativa numa transição política que de fato resultou num aprofundamento de crises e desigualdades.
Mas a pergunta que um potencial primeiro-a-desobedecer enfrenta é quando é o momento certo para desobedecer? Enquanto é relativamente fácil desobedecer quando um movimento de desobediência civil já ganhou força, os dissidentes iniciais enfrentam uma situação bem mais desafiadora. A desobediência vale o risco? Será que o ato de obediência atingiu proporções tão imorais que conformar equivale a ser cúmplice na destruição da sociedade e em danos à vida inocente? Cada pessoa deve responder a essas perguntas por si mesma, mas uma resposta geralmente vem de dentro, na forma de um comando dado por nossa consciência:
"A etimologia da palavra "consciência" nos diz que é uma forma especial de "conhecimento"... A peculiaridade da "consciência" é que é um conhecimento, ou uma certeza, sobre o valor emocional das ideias que temos em relação aos motivos de nossas ações."
Carl Jung, Civilização em Transição
A consciência é um estado sentido, é uma forma intuitiva de conhecimento sobre o certo ou a injustiça de uma ação.
Efetivamente a etimologia nos aponta para um significado moral. A etimologia da palavra indica que consciência denota um conhecimento a respeito de princípios que está acessível a todos de maneira comum.
A palavra vem de dois termos em latim:
O prefixo “con”, que significa praticamente o mesmo em português “ com”, “junto” e do verbo sciere: que tem o significado de “saber” e “conhecer”. Consciência significa literalmente - “Saber Junto”, conhecimento ou senso comum.
Quando alinhamos o senso comum a ações Direitas, em português é o que damos o sentido de “bom senso”. Um conhecimento coletivo que funciona do lado do que é do bem e Direito.
Por sua vez, o exercício da consciência ocorre na decisão, através do livre arbítrio, de tomar ação Direita e não ação errada, uma vez o conhecimento definitivo da diferença objetiva entre Direito e errado, foi compreendida e integrada ao comportamento.
De fato, assumir a responsabilidade pelas próprias ações e pelas crenças que motivam tais ações, pode ser a coisa mais importante que se pode fazer quando qualquer pessoa se depara com a perspectiva de um governo opressivo.
Como Stanley Milgram observou em seus estudos psicológicos sobre obediência: "O desaparecimento de um senso de responsabilidade é a consequência mais abrangente da submissão à autoridade."
A pesquisa de Milgram na década de 60, juntamente com o estudo da Prisão de Stanford, são somente dois estudos acadêmicos em ciência comportamental que se tornaram emblemáticos em provar que o sistema operacional do ser humano simplesmente não responde bem sob autoridade, e isso vale tanto para quem está na posição de autoridade ou na de submissão. Não adianta lutar contra a natureza, sobretudo a nossa própria, jamais vai dar certo, é anti-evolutivo. Nossa natureza clama sim, por liberdade.
Podemos assim atribuir veracidade ao comentário de F.A. Harper: "o indivíduo que sabe o significado de liberdade encontrará um meio de se tornar livre."
Um dos exemplos mais famosos da história sobre um indivíduo que confiou em sua consciência para direcioná-lo em atos de desobediência foi Sócrates. Sócrates foi ordenado pelos Trinta Tiranos a prender um homem inocente e levá-lo a morte. Sócrates, no entanto, não praticava obediência cega, mesmo quando as ordens vinham dos tiranos que detinham o poder de vida e morte sobre ele. Sócrates, em vez de obedecer, ouviu sua consciência:
"...os Trinta me convocaram", disse Sócrates "... e me ordenaram levar Leon, o Salaminiano, à morte... Eu, no entanto, mostrei novamente, por ação, não apenas em palavra, que eu não me importo nem um pouco para a morte... mas que me importo com todas as minhas forças em não fazer o injusto ou o profano... Aquele governo, com todo o seu poder, não me assusta para que eu faça qualquer coisa injusta... Eu simplesmente fui para casa.”
Platão, Pedido de Desculpas
Quem mantêm os sistemas de tirania e escravidão existentes não é a classe dominante, nem os "líderes" políticos ou os autoproclamados "mestres", nem a chamada "elite". Quem mantém esses sistemas são os seguidores de ordens.
Um “seguidor de ordens” é alguém que faz o que uma outra pessoa manda, sem julgar por si se a ação que deve ser realizada é um Direito ou uma ação Errada.
É impossível alguém que segue ordens estar exercitando Consciência, uma vez que por definição o exercício da consciência significa a escolha da própria pessoa por realizar ações direitas a ações erradas. Se a escolha não foi do próprio indivíduo, não é consciente. Seguir ordens nunca deve ser visto como uma virtude; se a pessoa age com base apenas no que alguém lhe disse para fazer, não há qualquer virtude ou moralidade nisso. Não existe “seguir ordens moralmente”, os dois termos são opostos. A realização de ações por inconsciência só levam ao caos.
Mas ao trilharmos nossa rotina do dia a dia, nossa consciência tende a falar com voz mais baixa, a nos sussurrar, e seus sinais podem parecer ambíguos. Mas esse sussurrar já é o bastante para servir como um chamado para olharmos novamente para nós mesmos. Pois como Jung aponta, enquanto muitos dos dilemas morais da vida apenas provocam um sussurro em nossa consciência há outros momentos em que ela fala de forma tão alta e clara que se assemelha a uma voz divina, ou como Jung escreve em Civilização em Transição:
"Desde tempos antigos, a consciência tem sido entendida por muitas pessoas menos como uma função psíquica do que como uma intervenção divina; de fato, seus ditames eram considerados como... a voz de Deus. Essa visão mostra qual era o valor e o significado, e que ainda é, ligado ao fenômeno da consciência... comanda o indivíduo a obedecer sua voz interior, mesmo sob o risco de se perder.”
Carl Jung, Civilização em Transição
Se nossa consciência nos ordena a parar de obedecer a leis injustas e se cada vez que as obedecemos experimentamos algum grau de sentimentos de raiva e culpa, então enfrentamos uma escolha difícil: ou obedecemos à nossa consciência e nos tornamos dissidentes ou continuamos a obedecer aos comandos dos tiranos e nos tornamos traidores para nós mesmos.
Aqueles homens e mulheres cuja voz interior fala mais alto diante de uma tirania crescente são os mais propensos a formarem o primeiro grupo de dissidentes. Esse movimento vibra através da sociedade como um chamado por uma consciência objetiva, um senso comum, e é quando a desobediência civil se torna possível. Primeiro, o chamado da consciência é respondido por relativamente poucos, que servem de exemplo para outros.
Se pessoas suficientes receberão o chamado interior para um movimento de desobediência civil, vai depender de quantos dessa população ainda desejam liberdade em comparação com a proporção da população que foi psicologicamente subjugada pelo medo, ódio e confusão que é incessantemente semeada pela propaganda dos que se beneficiam de tiranias.
Em 1553, Etienne de la Boetie em seu “Discurso da Servidão Voluntária”, já nos convidava a enxergar o problema sob três aspectos:
"Parte I - A questão política fundamental é porque as pessoas obedecem a um governo. A resposta é que elas tendem a escravizar-se, a deixar-se governar por tiranos. Obter liberdade da servidão não vem por ação violenta, mas da recusa em servir. Tiranos caem quando o povo retira o seu apoio.
Parte II - Liberdade é a condição natural das pessoas. A servidão, no entanto, é fomentada quando as pessoas são criadas na sujeição. As pessoas são condicionadas para adorar governantes. Enquanto a liberdade é esquecida por muitos, há sempre alguns que nunca se submeterão.
Parte III- Para que as coisas mudem, deve-se perceber até que ponto a fundação da tirania reside nas vastas redes de pessoas corrompidas com interesse em manter a tirania."
Diante desses saberes atemporais, se a sensação da presença de tirania vier nos despertar na sociedade e tempo em que vivemos e se nossa consciência então emitir o comando de pararmos de sermos cúmplices no crime de obediência, tenhamos em mente a seguinte frase de Henry David Thoreau:
"A desobediência é a verdadeira base da liberdade. Os obedientes devem ser escravos.”
Henry David Thoreau, Desobediência Civil
Traduzido e adaptado a partir de:
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