"Em épocas quando os mais elevados valores da vida — nossa paz, nossa independência, nossos direitos básicos, tudo o que torna nossa existência mais pura, mais bela, tudo o que a justifica — são sacrificados ao demônio que habita uma dúzia de fanáticos e ideólogos, todos os problemas do homem que teme por sua humanidade se resumem à mesma questão: como permanecer livre?"
Em nossa era de estadismo, crises são sempre um momento delicado para aqueles que valorizam a liberdade. Com a moderna interligação socioeconômica entre as nações, uma crise externa, seja ela econômica, militar ou de saúde, ocorre com uma regularidade cíclica ao longo das décadas. Com uma sociedade miopemente focada na ameaça nominal da crise, projetos draconianos que limitam a liberdade são facilmente aprovados. O agravante é que uma população consumida pelo medo muitas vezes entregará voluntariamente suas liberdades pela promessa de um pouco mais de segurança.
Precisamos retroceder no tempo apenas alguns poucos anos até a crise de 2001 para enxergar uma continuidade nos padrões envolvidos. A queda das torres marcou a ascensão simbólica do estado de vigilância moderno com uma acentuação pontual naquele período em relação a perda de muitas liberdades civis ao redor do mundo. O que viabilizou essa escalada rápida no exercício de autoridade restritiva é a existência prévia de todo um aparato técnico e socio-burocrático, equivalente ao que presenciamos na história em todos os estados totalitários.
A crise mais atual, seja ela qual for em seu tempo, terá sempre o potencial de ser muito mais prejudicial à nossa liberdade do que a anterior, uma vez ela geralmente adiciona aspectos autoritários aos que já foram previamente implantados na crise anterior. Se o terrorismo nos causou e causa certas restrições, uma pandemia, uma guerra ou crise econômica que sucederem geram oportunidades para imposição de restrições adicionais.
A facilidade em rapidamente impor restrições significa que o Estado moderno em que vivemos é o que muitos já suspeitavam, são tiranias “chave na mão”, onde para implementar quaisquer aspectos restritivos, autoritários ou tiranos, basta virar algumas chaves. Restrições de movimento, limitações na interação social, controle estrito das atividades econômicas, vizinhos incentivados a denunciar uns aos outros, propaganda paternalista incessante e tudo isso amontoado em cima de um estado de vigilância já intrusivo, e o que temos é uma forma, uma medida, de totalitarismo colocado em prática.
Alguns podem tentar argumentar que tempos extremos exigem medidas extremas, mas todos os regimes totalitários usaram e usam a alegação de tempos extremos para justificar sua mão pesada.
Ainda que determinadas crises sejam realmente diferentes e se nessas o destino da humanidade de alguma forma repousar na imposição de dominação totalitária, a questão então se torna quando, e em que grau, voltaremos aos tempos não considerados extremos pelos poderes em exercício? A ameaça atual talvez diminua, mas e a próxima ameaça? E quanto ao potencial de crises fabricadas especificamente para disseminar medo, com o objetivo direto de aumentar nossa suscetibilidade para manipulação por engenharia social? Somos, como uma sociedade, astutos o suficiente para enxergar claramente a diferença entre crises fabricadas e crises reais? Podemos contar com uma mídia independente e vigilante que nos alertará para esses perigos? A história está repleta de exemplos onde o medo foi utilizado como arma para empoderar alguns ao manipular outros.
Ou como Joanna Bourke descreve em seu livro Medo: Uma História Cultural. (Fear: A Cultural History:)
". . . a manipulação por medo é realizada por inúmeras organizações com interesses na disseminação do medo, enquanto prometem erradicá-lo.” “Apesar da proliferação de discursos sobre o enfrentamento ao medo, sua erradicação nunca foi seriamente encorajada: a substituição de discursos inspiradores de medo, em vez de sua eliminação, tem sido o objetivo."
Mas uma crise é tanto um período de riscos quanto de oportunidades. Se o lado dos riscos está claro para aqueles de nós que valorizam a liberdade, qual é esse lado de oportunidade? A sensação do grau de totalitarismo presente em cada sociedade deve sempre servir como um termômetro necessário. Se valorizamos a liberdade, então é nos momentos em que nossa liberdade social está sob ameaça quando se torna crucial reafirmamos o único tipo de liberdade que está sempre sob nosso controle, nossa liberdade psicológica. A liberdade psicológica é um estado cognitivo que implica o reconhecimento de que o governo, ou qualquer outra forma de opressor, pode por coação ou imposição física limitar nossa capacidade de tomar certas ações, mas não é possível eliminar nossa capacidade de pensar por nós mesmos, discernir por nós mesmos o que é Direito e o que é errado, com base na Lei Natural e em princípios. Haverá sempre a capacidade, em algum grau possível, de agir com consciência através dos caminhos que escolhermos.
"Eu acorrentado? Você pode se apoderar da minha perna, mas a minha vontade, nem mesmo o próprio Zeus pode dominar"
Epictetus
Ou como Rudyard Kipling disse:
"O indivíduo sempre teve que lutar para não ser dominado pela tribo. Se tentar, muitas vezes você ficará sozinho, e às vezes assustado. Mas nenhum preço é alto demais pelo privilégio de ser dono de si.”
Rudyard Kipling, Entrevista com um Imortal
Em um mundo que não é livre social e politicamente, afirmar nossa liberdade psicológica não exige necessariamente confronto direto contra os mecanismos que protegem leis imorais do Estado. Enquanto a desobediência civil é em muitas ocasiões uma ferramenta eficaz para combater tiranias e ímpetos autoritários de governos, a confrontação direta, quando se faz necessária, é mais eficientemente aplicada em momentos propícios, após haver suficiente amadurecimento coletivo sobre o tema em questão.
Ao invés de iniciar por ações externas como em confrontos diretos, a afirmação de liberdade psicológica é uma forma de iniciar um caminho para uma sociedade mais igualitária a partir de um processo interno em cada indivíduo. Esse processo de liberdade psicológica equivale a um compromisso em cultivar o que é chamado de “autonomia moral”, como um meio de melhorar a nós mesmos como indivíduos e ajudar a devolver a liberdade a um mundo livre:
"A autonomia é um atributo de uma pessoa que se envolve com o mundo como um indivíduo ativo, racional e consciente. A etimologia dessa palavra: autos (eu) e nomos (regra da Lei) transmite o significado da auto-regra."
Ou como Furedi explica:
". . . a autonomia fornece os meios pelos quais as pessoas percebem seu potencial e caráter como seres humanos. A oportunidade de agir e de se expressar de acordo com sua inclinação, experiência e raciocínio permite que as pessoas desenvolvam seu senso de si mesmas e obtenham compreensão de onde estão em relação aos seus semelhantes. É através da capacidade de buscar decisões autônomas que os indivíduos aprendem a assumir a responsabilidade por suas ações e desenvolvem a capacidade de assumir uma medida de responsabilidade pelo bem-estar de seus concidadãos."
Preservar a autonomia moral é sempre relevante e positivo para as dinâmicas da vida sob quaisquer condições, mas é especialmente importante em momentos de convulsão social e mudanças rápidas.
Se a crise atual se mostrar significativa o suficiente para reordenar fundamentalmente a estrutura de nossa sociedade, muitos de nós logo descobrirão que os modos de vida e de pensar sobre diversas coisas que nos apoiaram até agora tornaram-se obsoletos. “Mudar ou perecer” é o lema de um admirável mundo novo e, a menos que estejamos dispostos a assumir a responsabilidade pelo nosso próprio futuro (e isso representa agir com autonomia e cultivar os traços que a autonomia exige como curiosidade, aprendizado autodirigido, capacidade em assumir riscos e em estar aberto para novas experiências), a única alternativa a esse estado é colocar nossas vidas nas mãos de outros. À medida que o poder do Estado cresce e governos se tornam cada vez mais paternalistas, mais pessoas passam a recorrer a políticos e burocratas para lhes exigir cuidados. Isso ocorre muitas vezes sem se darem conta que escolher esse caminho de autoridade através de estruturas hierarquizadas e compartimentalizadas é um passo que tomam por sua conta e risco, como explica Jung:
"A crescente dependência no Estado é tudo menos um sintoma saudável, significa que toda a nação está de forma equitativa a se tornar um rebanho de ovelhas, constantemente contando com um pastor para levá-los a bons pastos. As pessoas que trabalham com o pastor logo se tornam uma vara de ferro, e os pastores se transformam em lobos... Qualquer homem que ainda possui seu instinto de autopreservação sabe perfeitamente que apenas um vigarista poderia lhe aliviar da responsabilidade... [aqueles] que prometem tudo certamente não cumprirão nada, e todos que prometem demais correm o risco de usar meios escusos para cumprir suas promessas...”
A expressão positiva dessa busca interna é a soberania individual, ou tornar-se um monarca interno, regente de si mesmo. Verdadeiramente é somente nesse reino onde devemos ser reis. Falamos muito sobre o contexto de nações soberanas, mas uma nação só é soberana se antes seus indivíduos forem soberanos. Ser soberano implica por definição estar “acima do controle ou regência alheia”, ou seja, não ser um escravo em qualquer forma ou grau. Historicamente tem havido uma imposição na condição de regência sobre as vidas das pessoas, ainda que não exista legitimidade para qualquer ser humano impor suas demandas de controle através de coação sobre qualquer outro ser humano.
Buscar e ensinar esse nível de consciência e estado soberano está disponível para todos na humanidade. Fortalecer esse caminho de soberania através da autonomia moral não é apenas indispensável a sobrevivência coletiva em um mundo em rápida transformação, mas também é necessário se quisermos participar da tarefa que muitos filósofos consideraram nosso mais elevado objetivo – ou seja, a autocriação. Ao unirmos nossos três aspectos da consciência, pensar, sentir e agir, de forma que não exista contradições entre as formas de pensar, sentir e agir, teremos atingido esse estado de unidade, não dualidade, soberania. Seguir esse caminho é assumir a responsabilidade pessoal pelos próprios atos, definição de se tornar um adulto.
A autocriação, ou o que equivale ao desdobramento dos potenciais internos à medida que nos esforçamos para nos tornarmos essa versão mais completa de nós mesmos, requer o exercício de nossa soberania através de autonomia moral, pois como Nietzsche escreveu:
"Ninguém poderá construir a sua ponte para atravessar o rio da vida, ninguém além de você mesmo sozinho. Há, com certeza, incontáveis caminhos e pontes e semi-deuses que o levariam através deste rio; mas apenas ao custo de si mesmo; você iria penhorar-se e perder.”
Em uma sociedade livre, a tarefa da autocriação é, em muitos aspectos, forçada sobre nós pela natureza e inescapável, somos obrigados a lidar e conviver com ela. Mas ao passo que uma sociedade se aproxima cada vez mais do controle total do Estado, a autocriação torna-se muito mais desafiadora uma vez nossas oportunidades de cultivar e expressar nosso potencial diminuem de maneira proporcional.
Este truísmo foi o que levou Aleksandr Solzhenitsyn a descrever o totalitarismo como uma "terra de oportunidades sufocadas". (Aleksandr Solzhenitsyn, Gulag Archipelago Volume 3)
Mas mesmo que buscar esse estado soberano de autocriação seja mais difícil em uma condição de amplo controle do Estado, a dificuldade da tarefa não deve ser usada como desculpa para evitá-la, pelo contrário, devemos reconhecer a verdade nas palavras de Jung "que um homem cresce com a grandeza de sua tarefa." (Carl Jung, Collected Works Volume 9) Tornar-se um homem ou uma mulher que continua a se autocriar diante de um mundo cada vez mais regimentado e conformista é uma das mais elevadas tarefas a que podemos nos comprometer e que por sua vez pode imbuir nossa vida com o significado e o propósito que precisamos para florescer, pois como Stefan Zweig escreveu:
"Somente aquele cuja alma está em turbulência, forçado a viver em uma época em que a guerra, a violência e a tirania ideológica ameaçam a vida de cada indivíduo e a substância mais preciosa nessa vida, a liberdade da alma, pode saber quanta coragem, sinceridade e determinação são necessárias para permanecer fiel ao seu eu interior nestes tempos de expansão de rebanho. Só ele sabe que nenhuma tarefa na Terra é mais pesada e árdua do que manter a independência intelectual e moral e preservá-la imaculada através de um cataclisma em massa. Somente após ter suportado a necessária dúvida e desespero interno pode o indivíduo desempenhar um papel exemplar em firmar-se em meio ao pandemônio do mundo."
Afirmar nossa soberania através de autonomia moral e apostar na liberdade psicológica tem benefícios que vão além do meramente individual. São as ações pessoais de cada um de nós que, no agregado, cocria essa realidade social que experimentamos de forma compartilhada. O dizer alquímico “O que está Embaixo é como o que está Acima” fala exatamente sobre essa indivisibilidade entre o indivíduo e seu coletivo, são como um espelho um do outro.
Ao optar por manter um estado de homem ou mulher livre, e se esforçar para se comportar nas maneiras que refletem isso, nos tornamos uma força que empurra a humanidade na direção da liberdade. Ao contrário do que a propaganda estadista nos ensina, a liberdade não pode ser imposta de cima, nem é criada nas urnas. A liberdade emerge em um nível social quando o suficiente de nós reconhece seu valor e estrutura nossas vidas em conformidade com seus requerimentos, ou como explica Butler Shaffer:
"Você e eu não podemos trazer a civilização de volta à ordem tomando o poder político, nem atacando-o, mas afastando-nos dele, desviando nosso foco de templos de mármore e salas legislativas para a condução de nossas vidas diárias. A "ordem" de uma civilização criativa emergirá da mesma forma que a ordem se manifesta no resto da natureza: não daqueles que se formam líderes dos outros, mas da interconexão dos indivíduos que buscam seus respectivos interesses pessoais."
O que nos diferencia do restante do reino animal é justamente a capacidade de compreender e agir sobre o entendimento das regras comportamentais existentes na natureza. Compreender e nos alinhar as leis da natureza é o cerne do pensamento científico e caminho comprovadamente objetivo para evolução. No entanto, o agregado de nossas crenças e opções individuais cocriam uma sociedade competitiva amaparada em escassez onde funciona uma espécie de “lei do mais apto” adaptada para o convívio social humano, o “Darwinismo social”. Se a realidade materializada é essa, é por que necessariamente nós mesmos também manifestamos e propagamos dessas crenças limitantes, somos o espelho um do outro. A opção por uma “lei da selva” só pode nos conduzir a uma condição social mais similar à de répteis, distante do que caracteriza nossa humanidade. Ser consciente é optar, por escolha própria, por ações que refletem o que é correto, Direito, uma vez se tenha realizado a distinção objetiva entre o que é Direito e errado. Obter essa autonomia moral vem do processo de compreender os mecanismos que regem as interconexões individuais e as formas como delas se manifesta a criação de nossa experiência compartilhada de realidade.
Felizmente, uma mudança na sociedade na direção de mais liberdade não exige que esperemos por uma maioria para reconhecer o valor da liberdade. Ainda que um estado coletivo de autocriação exija uma maioria das pessoas e deve ser nosso objetivo comum, o estudo da ordem espontânea e dos sistemas caóticos sugere que o surgimento de uma nova forma de ordem requer apenas um ponto de inflexão a ser alcançado e isso pode ser efetivado por uma minoria dos agentes que atuam em qualquer sistema. Em termos sociais, pode-se imaginar da seguinte forma: você tem no meio a grande massa de homens e mulheres, indivíduos que não cultivam sua própria visão de mundo ou avaliam criticamente seus sistemas de crenças e valores, mas simplesmente adotam o que veem como mais conveniente. Em um lado deste rebanho humano você encontra aqueles que desejam controlá-los – os famintos por poder que prosperam da existência do Estado, motivados a manter as pessoas confinadas em suas crenças de que o poder do Estado representa o progresso social e que nesse sentido só existem soluções por intermédio e com a intervenção do Estado. Do outro lado do rebanho você tem aqueles que valorizam a liberdade e que entendem que o florescimento humano está intimamente ligado à presença de liberdade. Atualmente, a balança está fortemente inclinada para as ideias de estadismo uma vez a maioria das pessoas esqueceu, ou talvez nunca souber por nunca ter sido ensinada, o grande valor da liberdade. A história nos mostra que a maré pode sempre voltar para a liberdade, mas isso só ocorre quando o suficiente de nós mantiver a chama da liberdade acesa em suas horas mais escuras:
"Os grandes eventos da história mundial são, no fundo, profundamente sem importância", escreve Jung. "Na última análise, o essencial é a vida do indivíduo. Isso por si faz a história, é onde de maneira solitária, as grandes transformações acontecem primeiro, e todo o futuro, toda a história do mundo, em última análise, brota como uma soma gigantesca dessas fontes ocultas internas aos indivíduos. Em nossas maiores intimidades ou subjetividades da vida somos não apenas as testemunhas passivas de nosso tempo, e quem sofre, mas também seus criadores. Nós fazemos nossa própria época.”
Traduzido e adaptado a partir de:
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